O que é polimatia, por que temos poucos polímatas e por que isso é ruim

Michael Araki
9 min readJun 18, 2018

--

Qualquer um pode ser um multipotential? E um pluriapto? E um polímata? Essas questões estão ganhando grande espaço nas mídias sociais. Esse texto tem como objetivo tratar do tema da polimatia, buscando esclarecer um pouco mais sobre o que ela é, como ela funciona, qual as vantagens associadas a ela, e se você pode ser considerado um polímata.

Polimatia ainda é um termo um pouco obscuro e tem sido vinculado a uma miríade de outros conceitos, desde a multipotencialidade até transdisciplinaridade, passando por holismo e por outros conceitos que podem confundir ainda mais a nossa cabeça. Assim, o primeiro esforço é de definir com mais clareza do que se trata a tal polimatia. O termo polimatia vem do grego clássico e é a junção de poli, que significa muitos ou vários, e math, que é a raiz tanto de manthanein (o verbo aprender) e mathema (algo que é aprendido, especialmente através da reflexão[1]).

Tradicionalmente, a polimatia tem sido concebida como uma condição, ou um rótulo, ou um status, que dependeria de algum critério de atingimento. Geralmente, esse critério seria o atingimento de expertise em mais de uma área. Nessa linha, a questão mais contenciosa é exatamente definir que critério seria esse: o que seria considerado expertise e o que seria considerado uma área do saber? Por exemplo, álgebra e geometria seriam duas áreas diferentes ou uma área só, a da matemática? O expert é apenas alguém que sabe muito ou ele precisa ser capaz de criar algo novo e útil dentro da área para ser considerado polímata? No fim, os pesquisadores de diferentes linhas não atingiram muito consenso. Por sesse motivo, eu sugeri a criação de várias denominações de polimatia[2]: ela pode ir desde a esfera da experiência pessoal em múltiplos domínios (a polimatia experiencial), passando pela capacidade profissional em múltiplos domínios (a polimatia profissional), até chegar na esfera da criatividade eminente (a polimatia eminente), o que realmente só deverá ser atingido por pouquíssimas pessoas.

No entanto, a visão da polimatia como uma condição ou rótulo não é a única existente. Através do estudo do tema e a partir dos trabalhos de pesquisa de estudiosos como Root-Bernstein[3;4] e Sriraman[5], eu defendo que a polimatia pode ser vista como uma visão de mundo, ou mais precisamente, como uma característica de personalidade unificadora e latente que tem o poder de explicar muita coisa sobre o comportamento de uma pessoa. Essa ideia, ou o construto que ela representa, foi batizada de traço polimatia [2;6]. Se você quer saber se detém ou não o traço polimatia, eu proponho que você responda a essas duas perguntas:

1) Você possui uma variedade de interesses que é desconcertante para as outras pessoas?
2) Você imagina, no seu íntimo, que poderia ter um grande impacto na humanidade caso você consiga se engajar profundamente numa área por algum tempo?

Essas duas perguntas procuram capturar da forma mais parcimoniosa possível uma constelação de características pessoas que compõem o traço polimatia e, principalmente, qual o seu comportamento em relação aos três pilares da polimatia: a abrangência, a profundidade e a integração.

Polimatia = Abrangência + Profundidade + Integração

Embora a polimatia seja um fenômeno multifacetado, nos últimos tempos houve um bom esforço de pesquisa para que fosse possível capturar os elementos comuns que formariam o cerne da polimatia, qualquer que seja seu enfoque (como rótulo, como traço de personalidade, ou como visão de mundo). Chegou-se então nas três dimensões fundamentais da polimatia – também chamadas de os três pilares, ou os três cânones –, que serão detalhados a seguir.

Abrangência

A abrangência é o elemento mais conspícuo da polimatia. Está intimamente ligado ao radical grego poli, que significa muitos ou vários. Isto é, sem multiplicidade ou sem pluralidade não é possível haver a polimatia. O contrário da abrangência é o estreitamento, ou embridamento[2], do conhecimento, das experiências e das visões de mundo. A antítese perfeita da falta de abrangência é o fanatismo. O fanático é aquele que só conta com um ponto de vista e rejeita qualquer coisa além disso; i.e., zero abrangência. Por fim, a dimensão da abrangência pode ser dividida em dois subcomponentes: a extensão e a diversidade.

Extensão

Se refere à latitude ou amplitude de conhecimento de alguém. Também pode se referir à qual extensão do conhecimento social está disponível na mente da pessoa, mesmo que de forma um tanto superficial. Uma forma de verificar a extensão de alguém seria contando o número de domínios e subdomínios do conhecimento que uma pessoa possua algum grau de expertise.

Diversidade

Se refere à qualidade de possuir conhecimento em domínios não adjacentes, não relacionados, ou não comuns probabilisticamente falando. Ou seja, é quando alguém possui expertise em domínios que raramente alguém esperaria que coexistissem num único cérebro (lembra da variedade desconcertante de interesses?). Para diferenciar a extensão da diversidade, é possível usar uma ilustração da geografia. Um país pode cobrir território bastante extenso sem, contudo, possuir biomas muito diferentes entre si. Por exemplo, a Rússia tem mais extensão que o Brasil, mas seu bioma é provavelmente bem menos diversificado. Na esfera pessoal, é possível pensar num exemplo comparando dois atores. Um deles é capaz de atuar, cantar e dançar. O outro, de igual extensão, também é capaz de atuar e cantar, mas em vez de dançar, ele domina a arte da pantomima (que é uma modalidade do teatro baseada principalmente em gestos e mímica). Dada a maior raridade da segunda combinação de expertises, podemos dizer que o segundo ator possui maior diversidade do que o primeiro.

Profundidade

A profundidade é o segundo elemento da polimatia. Embora possa não parecer tão conspícuo quanto a abrangência, a profundidade é vista como fundamental em praticamente todas as definições modernas de polimatia no meio acadêmico. E isso não é à toa. Estamos falando da busca de um conhecimento que não é superficial nem leviano. É um conhecimento que passou por rigores da lógica, da sistematização e da experiência, que pode servir de base para nossa ação, e o que é mais importante: pode servir de base para construção de algo melhor do que já existe. Ou seja, apenas desenvolvendo o pilar da profundidade é possível agir de forma informada e gerar contribuições realmente originais e adaptativas ao mundo. Assim, a profundidade é o oposto da superficialidade e da ação leviana no mundo. Quando uma pessoa possui abrangência mas lhe falta profundidade, ela é chamada de diletante — i.e., alguém que se interessa por diversas coisas, mas de forma leviana, e que não chega a aprofundar o seu conhecimento em nenhuma das suas áreas de interesse. Contudo, é essencial ressaltar a importância das oportunidades e da existência de condições propícias para que alguém possa se aprofundar em alguma área com sucesso (como visto em outros textos da Associação Polímata [7;8]). Por fim, a profundidade pode se referir a dois tipos de conhecimento: o que advém de composição própria e o que advém de sampling, isto é, da coleta e internalização de conhecimentos formalizados por outros.

Profundidade via Composição

O conhecimento adquirido via composição é aquele que é único a você. Ele pode ter se originado de experiências e de insights que lhe foram únicos, importantes e que geraram em você a vontade de estabelecer um melhor encadeamento e uma melhor sistematização do seu conhecimento acerca de um fenômeno (ver mathema). As experiências e insights foram fatos geradores que trouxeram ideias que por sua vez passaram a popular o seu cérebro e lhe gerar certo incômodo: uma propensão para a ação. Ao longo do tempo, essas ideias foram sendo trabalhadas, passando por um processo de sistematização, aprimoramento e sofisticação que a pesquisadora Liane Gabora chama de honing[9], e que eu de forma independente tinha denominado de lapidação. Existe também outra forma de lapidação, que se origina não a partir de experiências ou insights únicos, mas sim de conhecimentos formais. Contudo, tais conhecimentos formais devem passar pelo mesmo processo de lapidação e reestruturação dentro do seu cérebro da pessoa de modo que o produto atual já não se pareça mais com o conhecimento original (adquirido via sampling). Assim, pode-se dizer que a diferença entre o produto final único que existe somente em seu cérebro e o conhecimento formal original que está disponível socialmente foi fruto de uma composição.

Profundidade via Sampling

Sampling (amostragem) é o processo de aquisição de conhecimentos que não envolve lapidação, apenas internalização de um conhecimento produzido por outros e que está disponível e geralmente bastante consolidado socialmente. O mais conspícuo exemplo da fomentação de sampling é a escola tradicional. Nela os alunos são avaliados pela capacidade de memorizar e reproduzir conteúdos referentes a um dado domínio. Quanto mais fiel ao conteúdo original, melhor o desempenho do aluno. Assim, o samplingé justamente definido por não haver grande diferença entre o conhecimento que está internalizado no cérebro da pessoa e o conhecimento formal cristalizado no domínio (esse conhecimento que hoje está formalizado no domínio foi fruto de composição de alguma mente brilhante do passado, um fato que é demasiadamente negligenciado no ensino tradicional). O termo amostragem é inspirado nos trabalhos de Csikszentmihalyi e Simonton sobre a relação entre criatividade e a aquisição de conhecimentos por uma pessoa, que, segundo eles, se daria principalmente através de uma “amostragem” retirada do “pool” de conhecimento total existente em um domínio.

Integração

Dos três pilares, a integração é o menos explicito e, portanto, não é surpreendente que tenha sido o último a ser “descoberto”. Contudo, ele é tão fundamental para a polimatia quanto os outros dois. Antes de ser formalmente proposto como um elemento da polimatia por mim em trabalhos acadêmicos [2; 6], a integração já aparecia em algumas descrições do comportamento polímata. Root-Bernstein foi fundamental em notar que polímatas de sucesso são especialmente capazes de integrar habilidades, talentos e atividades aparentemente díspares em um todo sinérgico. Sidney Harman, fundador da Academia de Estudos Polímatas na University of Southern California, definiu o polímata como alguém que não apenas obteve maestria em uma ou várias disciplinas, mas alguém que as integrou, as sintetizou de forma única. Dada a riqueza do conceito de integração, eu proponho, para uma melhor elucidação, uma divisão analítica em três subcomponentes: integração ideacional, integração da personalidade e meta-integração.

Integração ideacional

Se refere à integração no nível das ideias. É a capacidade de conectar, articular e sintetizar diferentes ideais (mathemata) ou diferentes matrizes de pensamento (ver também ambidestra matricial [2]).

Integração da Personalidade

Root-Bernstein não falava apenas na integração como fonte geradora de ideias, para ele o que diferencia o criador polímata do resto é a sua capacidade de integrar diversas atividades num todo sinérgico, o que abarca um todo também psicológico; isto é, a personalidade. Enquanto a integração ideacional está voltada ao aspecto cognitivo, a integração da personalidade envolve também uma sinergia entre os aspectos emocionais e conativos (motivacionais) da pessoa. É, portanto, algo mais poderoso e definidor da personalidade de uma pessoa. Esse conceito está relacionado à ideia de networks of enterprises de Howard Gruber e à polimatia como projeto de vida [6].

Meta-integração

Meta-integração é a capacidade de desenvolver e internalizar as outras capacidades integradoras. Em especial envolve a habilidade de desenvolver, reconhecer, perceber e discernir conceitos que são “alavancadores”; isto é, conceitos que podem não apenas ser utilizados para um fim específico, mas também como fomentadores de capital psicológico (a metáfora é referente à distinção entre bens de consumo e bens de capital, enquanto o primeiro é consumido num fim específico, o segundo é utilizado para produzir ainda mais riqueza). Dessa forma, o polímata “capitaliza” em cima de conceitos de forma única, gerando conexões que não são percebidas pelos outros. Além disso, o polímata “perde” menos tempo com a internalização de conceitos que são arbitrários, desconexos ou esquizoides. Um exemplo clássico é “estudar para a vida vs. estudar para a prova”. Quando se estuda somente para uma prova, tempo e energia vitais são gastos para internalizar e armazenar conceitos para um consumo único, a prova. Quando se estuda para a vida, se internaliza conceitos e ideias que realmente farão alguma diferença para você e que provavelmente você os carregará pela vida toda, independente de eles serem úteis para um único evento casuisticamente.
Através da explanação sobre o conceito de integração, deve ficar claro que o desenvolvimento de múltiplas habilidades não é algo de outro planeta, e sim uma capacidade de enxergar de forma muito clara como o conhecimento é construído e como ele pode ser alavancado por conhecimentos anteriores. Assim, da próxima vez que você ouvir a frase: — “Você faz X e também Y? Que exótico! Como você consegue?", responda: integração!
Expertise nada mais é do que uma constelação de ideias (mathemas) robustamente sistematizadas, de forma a gerar respostas bastante funcionais relacionadas a algum tópico. Gerar e ser capaz de integrá-los é uma habilidade, parte dela natural e parte desenvolvida.
Assim, a pergunta agora não é mais “por que possuir habilidades em duas áreas distintas parece tão exótico e improvável”, e sim: por que é esperado que as pessoas desenvolvam sistemas robustos e funcionais de conceitos somente relacionados a alguns poucos tópicos e por que transgredir essa “regra” causa tanto espanto? 
Continua...
__
Se esse texto foi de certa forma útil para você, por favor compartilhe-o para que outras pessoas também possam ter acesso! #polimatia @Associação Polímata
Caso queira conhecer mais sobre a polimatia, curta: Associação Polímata
Facebook: https://www.facebook.com/associacaopolimata/
Email: ciapolimata@gmail.com

--

--

Michael Araki

Researcher at University of Louisville | Polymathy studies | Creativity and Innovation | Polymathy matters, for personal, cultural and economic growth.